quinta-feira, 29 de março de 2012





Frágil — você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora. Para que o protejam, para que sintam falta. Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço. Um dia mandará um cartão-postal, de algum lugar improvável. Bali, Madagascar, Sumatra. Escreverá: penso em você. Deve ser bonito, mesmo melancólico, alguém que se foi pensar em você num lugar improvável como esse.Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo. Parado atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos, começa a passar.

Outra vez chinês, você se afasta um pouco para ver melhor o ideograma. “Verdade interior” — você repete. E acrescenta:

“Tenho uma boa taça. Quero compartilhá-la com você”. Estende as mãos para frente, como se fosse tocar o rosto de alguém. Mas você está sozinho, e isso não chega a doer, nem é triste. Então você abre a janela para o ar muito limpo, depois da chuva. Você respira fundo. Quase sorri, o ar tão leve: blue.

Caio Fernando Abreu - Pequenas Epifanias - 61: Verdade Interior
O Estado de S. Paulo, junho/1987

terça-feira, 27 de março de 2012

Dor

Chagall, The woman and the roses, 1929.


hoje a lágrima não rola
a dor demora
por dentro do peito
farpa afiada, corta sem dó.

hoje a palavra não fala
o silêncio responde
com um movimento brando
o desatino vão
que faz do amor um nó

hoje a noite não finda,
madrugada anuncia
com o sol raiando
por baixo das sombras
do que sobrou de mim.

hoje a interrogação
dorme em meus braços
e preenche os espaços
vazios de você.

Hoje é um oco
dor de doer tão fundo
um arrepio sobre a minha alma
sobre minha casa, sobre meu mundo.

Amor, cadê?

domingo, 25 de março de 2012

Aniversário

Chagall, La Danse, 1952.




Os anos deixam a marca,
No corpo, na alma, na vida
E a tua presença convida-me
A continuar caminhando.

e sorrisos e lágrimas enfeitam
o caminho de sonhos e desatinos
que escolhemos juntas

e esperanças e mágoas
constroem, destroem, levantam
o amor menino que nasce de novo.

Os anos passam serenos,
pelos nós dos desenganos
pelas águas do caminho
pelas lágrimas do cotidiano.

Mas a força mais importante
Desse amor que é absoluto e pleno
É que juntas estamos,
Estaremos
Permaneceremos
Amando, caminhando e sobrevivendo. 

Para sempre,

Feliz Aniversário! 

terça-feira, 20 de março de 2012

Saudade II

Chagall

Agora o mundo é menos absurdo que ontem
Mas ainda faz muito calor.
Meus pés contorcidos estão
E tentam em vão,
Encontrar os seus.

Nada acho
Na cama vazia, enorme de sonhos
Contento-me com o cheiro de novo, 
tecido pelo adeus.

Nada tenho
além da saudade
desenhada em minhas pálpebras
pela solidão da sua ausência.

Minha angústia pede clemência

sexta-feira, 16 de março de 2012

Amor Bastante



quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Paulo Leminsk 

quarta-feira, 14 de março de 2012

Fragile, Sting






If blood will flow when flesh and steel are one
Drying in the colour of the evening sun
Tomorrow's rain will wash the stains away
But something in our minds will always stay

Perhaps this final act was meant
To clinch a lifetime's argument
That nothing comes from violence
and nothing ever could
For all those born beneath an angry star
Lest we forget how fragile we are

On and on the rain will fall
Like tears from a star
Like tears from a star
On and on the rain will say
How fragile we are
How fragile we are

On and on the rain will fall
Like tears from a star
Like tears from a star
On and on the rain will say
How fragile we are
How fragile we are
How fragile we are
How fragile we are

segunda-feira, 5 de março de 2012

Coragem




Aprendeu a ser corajosa assim que nasceu. Com um susto a estar no mundo, respirar com um empurrão. Encarar o mundo estranho em que vivemos e deixar de lado o cantinho aconchegante da barriga da mãe. Não tinha medo de trovão, nem de cobra, nem de escuro. Quando ouvia barulhos estranhos sempre ia ver o que era, a curiosidade sempre foi maior que o medo. Mas, como ninguém é perfeito, ela tinha um medo sim. Um medo de criança que cresceu junto com ela e virou pavor.

Um dia a mãe acordou irritada com seus gritos ao deparar-se com o asqueroso inseto que subia pelas paredes. Uma barata. A mãe não entendia esses medos de criança e nem queria entender. E disse, como uma bruxa malvada, que ia jogar a barata em cima dela. Partiu com o que sobrara do peçonhento animal, em meio ao pavor que crescia nos olhos da menina. Foi salva pelo pai naquele dia. O homem, apesar de frio, também teve uma mãe malvada e sentiu-se comovido com o que acontecia com a filha. Naquele dia ela não conseguiu mais dormir e o medo da barata assumiu contornos gigantescos, maiores do que ela um dia podia imaginar.

E eis que hoje ela acordou do sono leve e deparou-se com o amor, encolhido num canto, amendrontado. Uma barata estava no banheiro. Era enorme, aterrorizante e tomava conta do espaço como uma ditadora lutando pelo seu território. Não deu nem para tomar banho. Teria que dormir suja mesmo. Os medos do seu amor confrontavam-se com os seus. E o que se faz numa hora dessas? Como salvar o outro de um medo que também é seu? Como ser muralha quando o que resta são pequenos destroços de concreto caídos pelo chão?

Ela não pensou muito. Levantou-se resoluta, mas cautelosa. Com um spray de inseticida em mãos e com toda a coragem do mundo foi enfrentar o inseto. Foi enfrentar o medo. Recuou depois de um tiro certeiro. E voltou para ver a espécime repulsiva debatendo-se até morrer. Respirou aliviada. Arrumou o espaço para o amor tomar banho. Tirou dali o cheiro, as lembranças do medo. Abriu o chuveiro e deixou que a água escorresse bastante. Limpou tudo e convidou-a para banhar-se de novo.  Sentiu que seu peito se enchia de um sentir bom, dever cumprido, proteção. O muro novamente se erguia, em sua boca um gosto suave de amor e valentia.

E neste dia descobriu, de súbito, que a coragem se revela em nós das mais inusitadas formas. E quando amamos, o medo fica menor até sumir. Porque amar é ser forte quando só restam destroços. É reconstruir as colunas, as paredes, a casa. É reforma íntima e crescimento. Amor é coragem.